A Disputa do
Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências, conhecida
como as 95 Teses, desafiou os ensinamentos da Igreja Católica quanto à natureza
da penitência, a autoridade do papa e da utilidade das indulgências. As 95
teses impulsionaram o debate teológico que acabou por resultar no nascimento
das tradições luteranas, reformadas e anabaptistas dentro do cristianismo. Este
documento é considerado por muitos como um marco da Reforma Protestante.[1]
A ação de
Lutero foi em grande parte uma resposta à venda de indulgências (perdão)por
João Tetzel, um frade dominicano, delegado do Arcebispo de Mogúncia e do papa.
O objectivo desta campanha de angariação de fundos foi o financiamento da
Basílica de S. Pedro em Roma"[2].
Mesmo apesar
de o príncipe-eleitor (soberano) de Lutero, Frederico, o Sábio, e o príncipe do
território vizinho, o duque Georg da Saxónia, terem proibido a venda de
indulgências em seu território, muitas pessoas viajaram para as poder adquirir.
Quando estas pessoas vieram confessar-se, apresentaram a indulgência, afirmando
que não mais necessitavam de penitenciar pelos seus pecados, uma vez que o
documento as perdoava de todos os pecados.
Alguns dizem
que Lutero afixou as 95 teses na porta da igreja castelo em Wittenberg,
Alemanha, a 31 de Outubro de 1517. Outros académicos questionaram a veracidade
desta noção, notando que não existem relatos de contemporâneos para ela. Outros
afirmaram que não houve necessidade de tais relatos pois esta acção era nos
dias de Lutero o modo comum de anunciar eventos nas universidades do tempo. As
portas de igrejas funcionavam na altura como os placares informativos funcionam
hoje nos campos universitários. Outros ainda sugeriram que as 95 teses podem muito
bem ter sido afixadas em novembro de 1517.
A maioria é
unânime pelo menos em que Lutero teria remetido estas teses por correio ao
Arcebispo de Mogúncia, ao papa, a amigos e a outras universidades nessa data,
enquanto historiadores como Gottfried Fitzer, Erwin Iserloh e Klemens
Houselmann contestaram essa versão e disseram que não houve de fato a fixação
das 95 teses em Wittemberg. Do relato de Johannes Schneider, um criado de
Lutero, é que se extraiu a notícia da afixação das teses. Escreveu apenas: "No
ano de 1517, Lutero apresentou em Wittenberg, sobre o EIba, segundo a antiga
tradição da universidade, certas sentenças para discussão, porém modestamente e
sem haver desejado insultar ou ofender alguém". Assim, alguns concluem que
não houve esse evento.
Com um
desejo ardente de trazer a verdade à luz, as seguintes teses serão defendidas
em Wittenberg sob a presidência do Rev. Frei Martinho Lutero[3],
Mestre de Artes, Mestre de Sagrada Teologia e Professor oficial da mesma. Ele,
portanto, pede que todos os que não puderem estar presentes e disputar com ele
verbalmente, façam-no por escrito.
Em nome de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
2. Esta
penitência não pode ser entendida como penitência sacramental (isto é, da
confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).
3. No
entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência
interior seria nula se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação
da carne.
4. Por
consequência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a
verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada do reino dos céus.
5. O papa
não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por
decisão própria ou dos cânones.
6. O papa
não tem o poder de perdoar culpa a não ser declarando ou confirmando que ela
foi perdoada por Deus; ou, certamente, perdoados os casos que lhe são
reservados. Se ele deixasse de observar essas limitações, a culpa permaneceria.
7. Deus não
perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo
humilhada, ao sacerdote, seu vigário.
8. Os
cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones,
nada deve ser imposto aos moribundos.
9. Por isso,
o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seus decretos,
sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade.
10. Agem mal
e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos
penitências canônicas para o purgatório.
11. Essa
cizânia de transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido
semeada enquanto os bispos certamente dormiam.
12. Antigamente
se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como
verificação da verdadeira contrição.
13. Através
da morte, os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas,
tendo, por direito, isenção das mesmas.
14. Saúde ou
amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto
mais quanto menor for o amor.
15. Este
temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras coisas) para
produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do
desespero.
16. Inferno,
purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o
semidesespero e a segurança.
17. Parece
necessário, para as almas no purgatório, que o horror devesse diminuir à medida
que o amor crescesse.
18. Parece
não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura,
que elas se encontrem fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.
19. Também
parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas de sua
bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos
plena certeza disso.
20.
Portanto, por remissão plena de todas as penas, o papa não entende simplesmente
todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.
21. Erram,
portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de
toda pena e salva pelas indulgências do papa.
22. Com
efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo
os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.
23. Se é que
se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele, certamente, só é dado
aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.
24. Por
isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa
magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.
25. O mesmo
poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura
tem em sua diocese e paróquia em particular.
26. O papa
faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não
tem), mas por meio de intercessão.
27. Pregam
doutrina mundana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa,
a alma sairá voando [do purgatório para o céu].
28. Certo é
que, ao tilintar a moeda na caixa[1], pode aumentar o lucro e a cobiça; a
intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.
29. E quem é
que sabe se todas as almas no purgatório querem ser resgatadas, como na
história contada a respeito de São Severino e São Pascoal?
30. Ninguém
tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido
plena remissão.
31. Tão raro
como quem é penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências,
ou seja, é raríssimo.
32. Serão
condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam
seguros de sua salvação através de carta de indulgência.
33. Deve-se
ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela
inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Ele.
34. Pois
aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de satisfação
sacramental, determinadas por seres humanos.
35. Os que
ensinam que a contrição não é necessária para obter redenção ou indulgência,
estão pregando doutrinas incompatíveis com o cristão.
36. Qualquer
cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plena tanto da pena como
da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de indulgência.
37. Qualquer
cristão verdadeiro, vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e
da Igreja, que são dons de Deus, mesmo sem carta de indulgência.
38. Contudo,
o perdão distribuído pelo papa não deve ser desprezado, pois – como disse – é
uma declaração da remissão divina[2].
39. Até
mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar simultaneamente perante
o povo a liberalidade de indulgências e a verdadeira contrição.[3]
40. A
verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das
indulgências as afrouxa e faz odiá-las, ou pelo menos dá ocasião para tanto.[4]
41. Deve-se
pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não
as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.[5]
42. Deve-se
ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências
possa, de alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia.
43. Deve-se
ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado,
procedem melhor do que se comprassem indulgências.[6]
44. Ocorre
que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo
que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.
45. Deve-se
ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com
indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.
46. Deve-se
ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o
que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com
indulgência.
47. Deve-se
ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui
obrigação.
48. Deve
ensinar-se aos cristãos que, ao conceder perdões, o papa tem mais desejo (assim
como tem mais necessidade) de oração devota em seu favor do que do dinheiro que
se está pronto a pagar.
49. Deve-se
ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua
confiança nelas, porém, extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por
causa delas.
50. Deve-se
ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de
indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la
com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.
51. Deve-se
ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do
seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extorquem
ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a
Basílica de S. Pedro.
52. Vã é a
confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o
comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas
mesmas.
53. São
inimigos de Cristo e do Papa aqueles que, por causa da pregação de
indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.
54. Ofende-se
a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às
indulgências do que a ela.
55. A
atitude do Papa necessariamente é: se as indulgências (que são o menos
importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia,
o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de
sinos, procissões e cerimônias.
56. Os
tesouros da Igreja, a partir dos quais o papa concede as indulgências, não são
suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.
57. É
evidente que eles, certamente, não são de natureza temporal, visto que muitos
pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.
58. Eles
tampouco são os méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o
papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser
humano exterior.
59. S.
Lourenço disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no
entanto, a palavra como era usada em sua época.
60. É sem
temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que foram proporcionadas pelo
mérito de Cristo, constituem estes tesouros.
61. Pois
está claro que, para a remissão das penas e dos casos especiais, o poder do
papa por si só é suficiente.[7]
62. O
verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de
Deus.
63. Mas este
tesouro é certamente o mais odiado, pois faz com que os primeiros sejam os
últimos.
64. Em
contrapartida, o tesouro das indulgências é certamente o mais benquisto, pois
faz dos últimos os primeiros.
65.
Portanto, os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam
homens possuidores de riquezas.
66. Os
tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a
riqueza dos homens.
67. As
indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente
podem ser entendidas como tais, na medida em que dão boa renda.
68.
Entretanto, na verdade, elas são as graças mais ínfimas em comparação com a
graça de Deus e a piedade da cruz.
69. Os
bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os comissários
de indulgências apostólicas.
70. Têm,
porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com
ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos
em lugar do que lhes foi incumbidos pelo papa.
71. Seja
excomungado e amaldiçoado quem falar contra a verdade das indulgências
apostólicas.
72. Seja
bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das
palavras de um pregador de indulgências.
73. Assim
como o papa, com razão, fulmina aqueles que, de qualquer forma, procuram
defraudar o comércio de indulgências,
74. muito
mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram fraudar
a santa caridade e verdade.
75. A
opinião de que as indulgências papais são tão eficazes a ponto de poderem
absolver um homem mesmo que tivesse violentado a Mãe de Deus, caso isso fosse
possível, é loucura.
76.
Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o
menor dos pecados venais no que se refere à sua culpa.
77. A
afirmação de que nem mesmo São Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia
conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o Papa.
78. Dizemos
contra isto que qualquer papa, mesmo São Pedro, tem maiores graças que essas, a
saber, o Evangelho, as virtudes, as graças da administração (ou da cura), etc.,
como está escrito em I.Coríntios XII.
79. É
blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insigneamente erguida,
eqüivale à cruz de Cristo.
80. Terão
que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes
sermões sejam difundidos entre o povo.
81. Essa
licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil nem para os
homens doutos defender a dignidade do papa contra calúnias ou questões, sem
dúvida argutas, dos leigos.
82. Por
exemplo: Por que o papa não esvazia o purgatório por causa do santíssimo amor e
da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas
–, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro
para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante?
83. Do mesmo
modo: Por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que
ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em
favor deles, visto que já não é justo orar pelos redimidos?
84. Do mesmo
modo: Que nova piedade de Deus e do papa é essa que, por causa do dinheiro,
permite ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, mas não a
redime por causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta por amor
gratuito?
85. Do mesmo
modo: Por que os cânones penitenciais – de fato e por desuso já há muito
revogados e mortos – ainda assim são redimidos com dinheiro, pela concessão de
indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?
86. Do mesmo
modo: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos ricos mais
Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma Basílica de
São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos próprios fiéis?
87. Do mesmo
modo: O que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita,
têm direito à plena remissão e participação?
88. Do mesmo
modo: Que benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa,
assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e
participações cem vezes ao dia a qualquer dos fiéis?
89. Já que,
com as indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do que o
dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências, outrora já concedidas, se
são igualmente eficazes?
90. Reprimir
esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem
refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria
dos inimigos e fazer os cristãos infelizes.
91. Se,
portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a
opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem
mesmo teriam surgido.
92.
Portanto, fora com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo "Paz,
paz!" sem que haja paz!
93. Que
prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo "Cruz! Cruz!"
sem que haja cruz![8]
94. Devem-se
exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através
das penas, da morte e do inferno.
95. E que
confiem entrar no céu antes passando por muitas tribulações do que por meio da
confiança da paz.
[1] Antonio Gasparetto Junior (27 de janeiro de 2012). 95
Teses de Martinho Lutero (em português). Página visitada em 30 de outubro de
2012.
[2] Treu, Martin. Martin Luther in Wittenberg: a
biographical tour. Wittenberg: Saxon-Anhalt Luther Memorial Foundation, 2003. p. 15
[3] Works of
Martin Luther: Adolph Spaeth, L.D. Reed, Henry Eyster Jacobs, et Al., Trans. & Eds. (Philadelphia: A. J. Holman Company, 1915)
Nenhum comentário:
Postar um comentário